Do Alto do Mulungu, a esperança desce para a Avenida
Acadêmicos de Niterói transforma a própria vivência em homenagem e faz do samba uma aula de Brasil
Há enredos que chegam como escolha estética. E há enredos que chegam como retrato. A Acadêmicos de Niterói decidiu atravessar 2026 com um tema que acende conversa dentro e fora do Carnaval, porque mexe com memória, identidade e com a biografia de muita gente que vive o samba de dentro: “Do Alto do Mulungu surge a esperança: Lula, o operário do Brasil”, criação do carnavalesco Tiago Martins e do enredista Igor Ricardo. A escola, campeã da Série Ouro e estreante no Grupo Especial, não parece interessada em suavizar a proposta. Pelo contrário: aposta na força simbólica de contar, em linguagem carnavalesca, a trajetória de um homem que saiu do chão mais duro e chegou ao topo do país, espelhando uma narrativa que é familiar para quem nasceu na periferia e aprendeu a disputar espaço.
O que chama atenção, porém, é como os segmentos falam dessa homenagem a partir do lugar mais íntimo: a própria vida. O presidente da escola costura o enredo com a experiência pessoal de quem reconhece nas políticas sociais uma chave concreta de mudança, como se dissesse que o Carnaval não é um mundo paralelo, mas um palco onde a realidade também desfila. Essa mesma linha aparece nas falas de quem segura o ritmo e a responsabilidade do conjunto: o mestre de bateria coloca o tema no terreno do cotidiano, lembrando que ascensão não é teoria quando atinge a mesa, o estudo, o trabalho e o futuro de famílias inteiras. E, mesmo quando o assunto inevitavelmente esbarra em posições políticas, o tom escolhido por eles é de maturidade: respeitar opiniões, entender divergências, não perder o foco do que se quer construir em cena.
Na comissão de frente, a ideia ganha contorno ainda mais direto: representar o povo trabalhador, dar corpo e imagem à base que sustenta o país e que sustenta o samba. Há uma consciência bonita nessa abordagem, porque não trata o homenageado como estátua, e sim como símbolo de uma época e de uma possibilidade: a de alcançar espaços antes negados. A porta-bandeira reforça isso com o tipo de verdade que não pede licença para emocionar: a história do samba é feita por gente de luta, por quem veio do morro, por quem viu os pais sem oportunidade e, ainda assim, encontrou caminho para estudar, crescer e voltar para a comunidade com a cabeça erguida. De repente, o enredo deixa de ser “tema” e vira espelho — e é aí que o Carnaval mostra seu poder mais raro.
Até a voz do intérprete aparece como síntese de avenida: a escola sabe que vai ser questionada, sabe que haverá crítica, sabe que tema com essa dimensão cria ruído. Mas a resposta vem com a lógica do próprio samba: se tem quem ataque, também tem quem defenda, porque a festa popular nunca foi unanimidade, e talvez por isso mesmo ela seja tão viva. A direção de harmonia fecha o pensamento com uma frase que atravessa tudo: há histórias que falam por si. E a Acadêmicos de Niterói parece disposta a deixar que essa história, carnavalizada e transformada em espetáculo, encontre seu lugar na Sapucaí como mensagem, como memória e como debate.
E no meio de tudo isso existe um detalhe que muda a temperatura do sonho: a escola será a primeira a desfilar no domingo. Primeiro lugar não é só posição na ordem; é responsabilidade de abrir a noite com clareza, impacto e leitura. Se a Niterói acertar o tom, ela não vai apenas estrear. Vai marcar presença.

